top of page
Agama 200x200.png
  • Foto do escritorMaria Lucia

Os rezos, as ervas e minha ancestralidade


Foto: Annie Spratt // Unsplash

Era uma vez uma menina que todo final de ano viajava com seus pais para Marília, interior de SP. Uma viagem magica, sobretudo em seus conteúdos e significados. A viagem era feita de trem, e eu me recordo bem dos vagões enormes, do cheiro da fumaça emanado pela maquina a vapor, do bilheteiro que conferia as passagens, do homem que circulava pelos vagões com um carrinho cheio de revistas. Me lembro do trajeto que parecia uma eternidade, da profusão de pessoas, do medo que tinha que alguma mala fosse perdida, e de minha pequena mão agarrada a minha sacolinha...


Mas, encantador mesmo era a chegada a casa de meus avós. Meu avô sempre sentado no banquinho no portão, com seu cigarro de palha olhando o movimento da rua, minha avó com um lenço branco na cabeça cobrindo os escassos cabelos grisalhos e seu terço rodeando o pescoço.

A casa pequena para a quantidade de pessoas que nela circulava, parte feita de tijolos de barro, parte de madeira, rua de terra, cheiro de pão, bolinho de chuva, lamparina que bruxuleava noite afora formando figuras estranhas nas paredes e no teto, as vezes assustadoras de acordo com as historias ( ou causos) contados. No fogão a lenha ( fogo que nunca se extingue) uma chaleira queimada pelo tempo e uso, e um caldeirão sempre fumegante, exalando cheiro de cafe ou chá, este das ervas colhidas no quintal.


O quintal! Este era um caso a parte, para a menina de oito anos, era quase uma floresta, e nela eu me perdia entre arvores, raízes, arbustos, folhas e flores, cada uma com um aroma diferente e igualmente diferente as finalidades. Daquela pequena floresta eram colhidas as ervas para os diferentes banhos, rezos e chás. Folhas de manga, capim santo,cidreira, arruda, tapete de Oxalá, puejo, espadas de São Jorge, e outras infinidades.


Minha avó era muito procurada por ser benzedeira, missão que recebeu de meu bisavô, muito considerado por curar picada de cobra, com seus rezos e tinturas.

Dona Arlinda (como se chamava minha avó), benzia de tudo; espinhela caída, bucho virado, quebranto, mal olhado e o que mais aparecesse. Num espaço da casa tinha um pequeno altar, com diferentes santos ( que não me lembro os nomes) e de diferentes religiões, sem contar as infinidades de velas, Bíblias, crucifixos, fitas, plantas e o que mais que fosse considerado por ela sagrado ou adequado para se fazer o bem!


Segundo minha avó, ser benzedeira era uma atividade muito seria e de muita responsabilidade, pois nunca se podia recusar o atendimento a alguém que precisasse, independente do dia ou horário. Creio que por esta razão, nenhum de seus filhos, filhas, noras ou netos aceitou dar sequencia a seus conhecimentos! Eu, sinceramente gostaria de ter tido a oportunidade de ter aprendido com ela um pouco dos seus segredos e das palavras magicas que ela pronunciava enquanto nos benzia, e de ter herdado o precioso caderninho com as poderosas orações que ela sabia de cor e salteado. Todo o conhecimento se foi com ela. Será?


Sempre tive admiração pela minha avó, e mesmo na mais tenra idade eu nutria um respeito e uma enorme veneração pelo que ela fazia. Ficava escondida atras da cortina vendo ela benzer as pessoas que a procuravam! Ficava em absoluto silencio, quase sem respirar a fim de ouvir, captar ou entender as palavras ou sons que ela emitia, os olhos seguiam suas mãos, seguiam os ramos que faziam um verdadeiro balé sobre a cabeça, os ombros, braços, mãos e pernas. Minha mente absolvia tudo, o movimento da mão, o momento que aspergia a água, o fechar dos olhos. A respiração, o aroma das ervas friccionadas e bailando no ar!


Minha avó se foi, os santos do altar dela se foram, os livros de orações se perderam, mas uma coisa permaneceu: o pertencimento.


Um pouco da velha Arlinda esta vivo em mim, nas minhas veias corre o sangue cafuzo, resultado do cruzamento entre negros e índios, no meu DNA o conhecimento perpetuado pela minha ancestralidade com toda a sua magia e segredo, visualizados recentemente numa cerimonia muito especial de consagração a medicina da floresta, onde eu pude vislumbrar que também tenho o conhecimento e posso fazer uso do legado de minha avó. Mas esta historia é para outro momento.

O que é nosso de fato, ninguém nos tira! Aho!

10 visualizações0 comentário
bottom of page